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Urbanofagias

Durante a pesquisa que fiz para escrita do último texto conheci uma série de eventos criada pelo Haus-Rucker-Co chamada Food City I (1971). Pareceu-me incrível a proposta de um evento organizado em torno de uma arquitetura comestível. Não pela ação de comer a arquitetura – que talvez até pudesse ter sido interessante pensar sobre -, mas o que poderia estar sendo ativado a partir dessa proposição.

Nesta série de eventos Haus-Rucker-Co construía maquetes, feitas de sanduíches e doces diversos, que em seguida eram consumidas pelo público. Ao construírem esses objetos comestíveis e depois oferecerem-os ao consumo, o coletivo vienense provocava, a partir da comida e do seu consumo ritualizado, a construção de uma comunidade provisória (de pessoas até então desconhecidas) da qual também faziam parte os integrantes do coletivo.

O alimento sempre esteve presente na história da arte. Muitos foram os artistas que o abordaram a partir da sua relação estreita com questões antropológicas, históricas, políticas, sociais, culturais e religiosas. Em 1967, por exemplo, o artista Daniel Spoerri estabeleceu o termo Eat Art ao questionar, a partir do descarte, a brusca transformação que a dimensão ritualística da comida sofreu com a sociedade de consumo (Palindromic Dinner, 1967).

Contemporaneamente Alicia Ríos é outra artista que (individualmente e com o coletivo Ali&Cia) desenvolveu projetos de arte relacionados à comida. Em um de seus projetos, como Haus-Rucker-Co, propõe uma série de cerimônias chamadas Urbanophagy: Eating the City em que convida pessoas a construir, coletivamente, maquetes de uma localidade e depois consumir esses bairros e monumentos comestíveis. Essa “urbanofagia” proposta por Ali&Cia, é uma tentativa de integrar as comunidades da cidade numa ação coletiva e pública, sensorial, sensual e comunitária de construção e partilha.

Outro fator interessante dessas proposições é que ao mesmo tempo em que o objeto-alimento convoca as pessoas ao evento, também está provocando a destruição de si mesmo (e de um dos motivos que levou as pessoas ao evento). Ao ser consumida, em poucas horas desaparece. Não é curioso que a arquitetura (tradicionalmente entendida como uma construção durável) tenha sido representada a partir do efêmero e de uma ideia de destruição? Que tipo de arquitetura estavam propondo destruir Haus-Rucker-Co?

Essa questão me fez trazer a experiência argentina do Obelisco de Pan Dulce (1979) da artista Marta Minujín. O Obelisco Acostado (1978), em São Paulo, é o primeiro de suas obras monumentais, mas dessa vez foco na sua versão consumível, um projeto de arte pública que me parece também tocar na destruição do objeto pelo público a partir do consumo da comida.

Obelisco de Pan Dulce (1979)

Para este trabalho Minujín construiu uma estrutura metálica de 36 metros de altura e a cobriu com panetone. Estrutura essa que foi depois reclinada permitindo a distribuição dos pães. Ritos e mitos estão muito presentes na poética de Minujín e neste trabalho ela utilizou dois elementos culturais significativos para a cultura argentina: o obelisco, símbolo portenho, e o pan dulce, herança italiana.

Obelisco de Pan Dulce (1979)

Como estamos vivendo um momento de fortalecimento das discussões sobre os monumentos considero interessante trazer esse exemplo da década de 1970 que também nos permite refletir sobre a sua função política, a sua mitificação pela sociedade, sua estrutura falocêntrica, etc. A própria artista chegou a dizer que o construiu para que, ao ser comido, fosse dessacralizado e outros mitos pudessem ser construídos.

Além disso, naquele período a Argentina vivia a tragédia de uma ditadura militar, um período, portanto, de restrições. A instalação evocava um sentido de compartilhamento e convívio no espaço público que não eram experimentadas com liberdade. Novamente, o momento comunitário de partilha do alimento em um espaço público é o elemento disparador da ação de consumo e destruição. O que permanece, em todos esses casos que trouxe, não me parece ser uma construção física, uma edificação, mas sim a memória de um ritual coletivo e público.

Diante do abrupto distanciamento da esfera pública que vivemos nos últimos meses, da interrupção dos rituais cotidianos e até inclusive pensando nas festas públicas populares brasileiras como o Carnaval de rua (principalmente sua expressão insubmissa e democrática), concluo esse texto com algumas questões. Que dimensão de consumo (em sentido amplo) desses espaços será experimentada a partir de agora? Como os nossos rituais coletivos foram transformados? Foram mesmo transformados? Como será reencontrar estes rituais públicos que em essência são sustentados pelo encontro e partilha?

Imagem destacada: Haus-Rucker-Co, Food City I, foto: Walker Art Center Archives