Por Mauricio Igor, 2020, 4’50”
por Laura Benevides
Corpo é memória. É a primeira coisa que penso quando assisto De uma Belém a outra. Na verdade não é apenas memória, mas faz memória. Porque quando este corpo, filho de uma nação que foi construída sob o holocausto ameríndio vai ao encontro do invasor, ou melhor, ao encontro do símbolo que glorifica essa invasão, este corpo carrega consigo a história de outros corpos. A sua presença naquele território tensiona a farsa do “descobrimento” que atravessa e une a história destes países, assim como evidencia em um só tempo a condição idolátrica e de ruína daquele monumento.
Nesta videoperformance, Mauricio sobrepõe imagens, discursos, camadas. Seu corpo amazônico, deslocado da centralidade político-econômica do seu país, atravessa o Atlântico – esse corpo-território que além de uma massa d’água foi marcado pela travessia compulsória que Paul Gilroy evoca como constitutiva na formação da modernidade ocidental. Estamos em março de 2021, completamos 1 ano de pandemia e é inevitável não pensar no deslocamento e na migração como um fator fundamental na discussão contemporânea sobre a nação. A ação de atravessar fronteiras desestabiliza os fundamentos do Estado-nação, a definição de nação e a invenção dos seus limites. Quando o artista se desloca de Belém do Pará à Belém de Lisboa, emergem desta movência questões urgentes que evidenciam um território esgotado em seus modelos.
A imagem do encontro destes corpos em escalas tão distintas me fazem ainda pensar nos “cobrimentos” e “encombrimentos”, nos espaços de luta e dor esquecidos, cobertos por outras camadas de significado. Esse encontro também contrapõe a verticalidade e violência estrutural, heteronormativa, racista e segregadora implícita no espaço público. Tradicionalmente, instalar um monumento é uma ação de assentamento público de uma (suposta) verdade, de um (suposto) feito glorioso. O irônico é que estes símbolos, que seriam terrenos de pertencimento compartilhados, carregam ao mesmo tempo um peso simbólico e material que afirma (ou ameaça?) o poder que os mantém lá e também define quais os limites das nossas paisagens sociais. Porque o espaço é também fôrma para os nossos corpos. Porque esta fôrma não é neutra e livre. Estes corpos monumentais cartografam uma experiência urbana que reproduz física, social e subjetivamente as estruturas de poder. Então quais corporalidades se (re)produzem?
Enquanto assistia à videoperformance, fiquei lembrando também de quando bell hooks explica que a própria contação de história constitui o nosso eu em um “eu como eu me vejo enquanto narro”. Então como eu me vejo enquanto escuto o outro? A escolha de compartilhar a sua experiência em terra lusitana através da oralidade confere uma intimidade quase ausente nessa esfera do espaço público, o que me parece também um ritual de cura de um trauma coletivo a partir da exposição dessa história individual de um (re)encontro com os estereótipos, as dificuldades em adequar-se, a curiosidade insistente pelo Outro. Além disso, a escolha pela transmissão oral me parece também confrontar em mais uma camada as narrativas oficiais/acadêmicas/escritas de uma ciência dura e inorgânica, da história oficial.
As histórias, como também nos ensinou bell hooks, contém o poder e a arte da possibilidade. Aqui, Mauricio me parece mobilizar o desejo (no sentido de uma força de construção) de que rememorar estes encontros – com a invenção de um Brasil e com Portugal, seus símbolos e seu povo – também sirvam à construção de um caminho para elaborarmos outros horizontes, onde não mais se esqueça ou negue os traumas que também constituem estes corpos-nações.
Laura Benevides é pesquisadora, artista e arquiteta.
PROJETO SELECIONADO PELO PRÊMIO REDE VIRTUAL DE ARTE E CULTURA – FUNDAÇÃO CULTURAL DO PARÁ
Edital Nº 010/2020 de 15 de julho de 2020
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