Hierofania traz ao Ateliê Alê obras da artista multimídia Camila Crivelenti. Com curadoria de Ana Roman, a exposição apresenta o projeto de conclusão de Camila no programa ILAP, o Laboratório Internacional de Práticas Artísticas da Uncool Artist, organização de arte independente com sede no Brooklyn, NY, fundada e dirigida pela artista paulistana Carolina Paz.
A mostra é composta por objetos, pinturas, instalações e realidades virtuais e explora como diversos materiais podem ser ferramentas que moldam nossa realidade e dão sentido à nossa existência, tornando-se assim, sagrados.
Com todas essas questões de materialidade e sacralidade a artista propõe uma nova forma de olhar para nossos pertences, sejam eles materiais ou imateriais, como ferramentas que nos guiam, nos orientam em nossos caminhos e nos trazem de volta para nosso próprio interior.
A alquimia consiste em uma série de ensinamentos práticos e teóricos voltados à transformação e ao aperfeiçoamento da matéria. Os alquimistas buscavam incessantemente compor o elixir da vida a partir de elementos da natureza. Tal forma de apreensão do mundo foi, assim como a bruxaria, subjugada historicamente, durante a transição para o meio de produção capitalista, em nome de um conhecimento universal, científico e masculino (FEDERICI, 2017)¹.
Há, porém, importantes iniciativas que buscam revistar as cosmogonias alquímicas a partir de perspectivas entendidas como científicas. Entre os anos 1930 e 1940, Carl Jung deslocou os ensinamentos alquímicos para o campo da psicologia². Para ele, a sabedoria milenar dos alquimistas poderia ser um instrumento de compreensão e de comunicação para as manifestações do inconsciente coletivo na psique individual. Deste modo, todos os estágios psíquicos ligados ao processo de individuação poderiam ser vistos metaforicamente a partir dos estágios alquímicos. Ao abandonar suas crenças místicas, a sociedade contemporânea não encontra meios de explicar o mal presente no mundo e em si mesma, relegando-o ao inconsciente.
Através da alquimia, o indivíduo é convidado a olhar para si, e consequentemente a confrontar-se com sua sombra, reconhecendo os aspectos sombrios de sua ânima e de sua persona. Em Hierofania, mostra individual de Camila Crivelenti, nos é requisitado praticar este princípio: busca-se uma relação mais direta com a natureza e com o universo que nos cerca.
Os trabalhos da mostra são enunciações quase textuais. Neles, inscrevem-se textos incompreensíveis ao um espectador, que busca decifrar, como letras, as linhas verticais e horizontais desenhadas e pintadas pela artista. Neste alfabeto opaco, conseguimos identificar repetições e recorrências, cujo sentido não pode ser atribuído à priori. Somente a relação íntima com tais objetos é o que permite seu ressoar em diversas cadeias de sentido e seus possíveis aspectos sagrados. Crivelenti cria objetos mobilizadores do sagrado que existe, em potência, em tudo que nos cerca.
Hierofania, mostra intitulada a partir de um termo cunhado por Mircea Eliade e que pode ser definido como o ato de manifestação do sagrado, organiza-se a partir de núcleos que recebem o nome das distintas fases alquímicas. Estas fases seriam, para os alquimistas, fundamentais ao processo de encontro com o elixir da vida eterna, a pedra filosofal. A primeira fase alquímica seria o Nigredo: o equilíbrio. Na mostra, esta fase é composta pela série Bandeiras (2022). Cada uma das doze bandeiras da série traz, em si mesma, uma inscrição. Ao sobrepô-las, tornando impossível a leitura de toda mensagem inscrita nas mesmas, a artista aponta para o acúmulo e a sobreposição do tempo, incrustada nas superfícies de todos os objetos que existem no mundo. Bandeiras acenam para os multiversos (e também metaversos) que compõem o frágil equilíbrio do momento atual.
A segunda fase, Albedo: a purificação, é composta pela instalação Fonte dos Desejos (2020). A partir de uma vasilha d’água, erguem-se quatro totens, que apontam para o céu. Albedo designa a capacidade de reflexividade dos diversos materiais, e, quando olhamos para a escala planetária, este fenômeno é fundamental para as dinâmicas atmosféricas. Em Fonte dos Desejos, a agência humana perante a escala e força do planeta é indagada: podemos – e somos convidados – a desejar outros futuros, no entanto, estamos inscritos em contextos concretos e também espirituais que nos escapam às mãos.
A terceira e quarta fases são, respectivamente, Citrinita: o amadurecimento e Rubedo: a iluminação. Em Citrinita, tem-se as séries Oratórios (2022), Ladrilhos (2022) e Ícones (2022). Nos Oratórios, ferraduras são justapostas a elementos que remetem a distintas matrizes religiosas e culturais brasileiras. Em Ladrilhos e Ícones, inscrevem-se símbolos e mensagens, que carregam, de algum modo, certa universalidade. Nas séries que compõem esta fase há uma certa estabilidade nas mensagens e objetos que, porém, permanecem opacas ao espectador. Além dos escritos, a artista interessa-se pela matéria – utiliza materiais brutos como ferro, argila e madeira. Para ela, a escolha destes materiais aponta para a natureza como fonte inesgotável de conhecimento e também a uma carga simbólica inconsciente contida em cada um deles.
Em Rubedo, quarta e última fase que compõe a narrativa constitutiva da mostra, tem-se duas instalações: Serpentes (2022) e uma instalação virtual criada pela artista. Em Serpentes, o espectador se vê diante de esculturas em ferro forjado a mão que guardam o formato de cobras, de um pêndulo metálico e é convidado a completar a instalação com uma vela, usando um filtro de Instagram disponível via QRCODE. Na instalação virtual, o espectador é convidado a adentrar o universo poético de símbolos da artista. Estes trabalhos miram a força vital contida na natureza destes seres que rastejam no planeta. Compreendê-los enquanto fonte de conhecimento fundamental para a construção de outra cosmogonia, que talvez parta de um hibridismo entre o universo virtual e físico.
Em Hierofania, reúnem-se trabalhos de Crivelenti que compreendem a existência em uma escala maior do que a cotidiana e terrena. Não se trata, de um domínio, e de uma subjugação da natureza, do tempo e do espaço ao conhecimento. A artista aponta para uma urgente observação e prática no mundo a partir da multiplicidade e do mistério. Não precisamos entender tudo que nos cerca, mas respeitar as opacidades e dar espaço àquilo que não podemos compreender.
¹ FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017, 406p
² Ver JUNG, Carl. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. In: Obras Completas de C. G. Jung, vol. IX/1. Petrópolis: Vozes, 2011e.
Ana Roman
Camila Crivelenti é artista multimídia, natural de Altinópolis-SP, atualmente vive e trabalha em São Paulo, Brasil. Sua pesquisa artística é alinhada com suas indagações espirituais e no desejo de explorar o invisível através do mundo material.
Com formação em Design e Artes Visuais suas produções sempre transitaram entre produções manuais e digitais na busca de acessar o inconsciente além da linha do tempo e da existência. Seus projetos já fizeram parte de exposições no Brasil, Estados Unidos e Europa.
Com a proposta de encontrar a conexão entre os diferentes universos possíveis, suas obras exploram diversas técnicas e materiais, caminhando entre os conceitos de amuletos, oráculos e ancestralidade a fim de captar a sabedoria contida na essência da Vida.
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