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My Uncool Artist Residency

Por Lara Perl*

The texture of time.
No trajeto de Salvador para Nova York, li um texto que falava sobre a textura do tempo. Como seria tocar nele? Gostei de pensar que o tempo seria sticky, pegajoso, talvez um pouco traiçoeiro com a gente. Algumas pessoas ficariam presas dentro dele: they got stuck in the past. Aquelas que conseguissem se libertar, no entanto, experimentariam tudo pela primeira vez: sem memória, cada beijo seria o primeiro beijo, cada dança, a primeira dança. Tive vontade de perder as minhas lembranças. Viver tudo como se fosse a primeira vez.

Crossing between cities.
Do avião, as nuvens faziam sombra na cidade. Eu tinha um caderno da minha mãe de quando ela morou em Nova York, há exatamente 30 anos. Encontrei a página em que ela escreveu o nome e telefone do meu pai, quando se conheceram, em um Falafel no East Village; gosto de imaginar meus pais nessa época, cheios de sonhos e possíveis futuros. Ela escrevia sobre os lugares que visitava, partes do corpo e outras palavras em inglês que aprendia, uma tal personagem que inventou chamada Lara Stress que passava por problemas estomacais e precisava de uma dieta. Essas pequenas narrativas meio malucas me arrepiam. Acho que meu trabalho acaba falando sempre dessas estranhezas, intimidades escondidas, antigos segredos e tiny stories; latentes, à espera de uma pele para serem sentidas novamente.

The first walk.
Minha primeira caminhada foi de Greenpoint para Long Island City, no Queens. Atravessei a ponte, encontrei um livro vermelho abandonado, um pedaço de isopor roxo com a palavra energía, um bilhete rasgado escrito à mão, uma loja com pedras brancas enormes, colocadas ali para decoração. Caminhei com aquele vento gostoso na cara, uma sensação boa de estar começando uma nova aventura. O que pode, afinal, uma cidade? Mudar o peso das coisas, dos passos, do corpo? Lavar os meus cabelos em outras águas, sair com os fios molhados no frio, aprender novos nomes de ruas, ouvir como a voz se comporta em outra língua. E, aos poucos, começar a me reconhecer em cada palavra escolhida.

For the disappeared.
Decidi buscar as pessoas e os lugares que apareciam nos arquivos do meu pai. Minha obsessão pelas suas histórias, seus segredos, pareciam ganhar novas cores em Nova York e senti que me apontariam um caminho interessante. Queria ir atrás dessa frágil ligação com a cidade que ele viveu, os amigos que ficaram, os lugares que resistiram, apesar de tudo. Comecei por St. Marks Place, a rua onde ele morou e trabalhou. O Yaffa Café já não existia mais, mas o sebo ainda estava lá. Comprei dois livros da seção True Crime. Donald, o dono da livraria, disse que lembrou do meu pai e me perguntou se o hábito de ler aqueles livros era uma herança. Eu respondi que sim. A dedicatória do livro dizia: aos desaparecidos.

The studio.
O estúdio tinha uma luz bonita à tarde. O chão era de madeira, duas janelas grandes, uma mesa, uma cadeira, dois banquinhos. As paredes estavam vazias. Para chegar lá, eu pegava o G train, passava pela India Street e caminhava até o Java Project. Levei alguns papéis, páginas soltas da minha coleção de livros, poucas fotos, um livro de telefones. No momento em que entrei no estúdio, sabia que iria habitar aquele lugar escolhendo cada detalhe. Quando cheguei com as coisas coletadas na primeira caminhada, comecei a colocá-las ao lado dos arquivos. Algo fazia sentido naquilo, como um mapa de texturas da cidade que iam se sobrepondo às histórias do passado.

Inherited friend.
Yael é um nome que escuto desde pequena e foi a primeira pessoa que encontrei. Ela visitou o Brasil quando eu era bebê e conhecia meu pai muito bem, o que nos conectou de imediato. Fui encontrá-la na sua loja de acessórios femininos, na Grand Central Station. No caminho para o restaurante onde íamos almoçar, ela me contou sobre o câncer. Com os olhos cheios de lágrimas, ela me disse que ia ficar bem. Passamos um domingo juntas, comemos Thai Food, ela me contou de quando morou em Sinal e se apaixonou por um fotógrafo alemão e me mostrou o seu livro de fotografias do Mar Vermelho. Ela me deu luvas, um gorro, um casaco e uma bolsinha de moedas. Disse que meu pai era cabeça dura mas tinha um bom coração. “Ele não precisava sofrer tanto; acho que ficou preso em algum lugar do passado”, contou.

Placemaking.
Nova York é uma cidade de camadas, layers, sobreposições, uma cidade geológica, de ilhas, de águas mas também de muito plástico, barulho e milhões de coisas acontecendo ao mesmo tempo. Onde podemos parar? Onde podemos escutar o passado? Um homem totalmente desconhecido habitou essa cidade. Em certo momento, ele e a cidade tornam-se um só. Como é bonito isso, não é mesmo? Cada pessoa que conheci tem a sua Nova York. Qual é a minha? Como a cidade e as nossas emoções se conectam? O que faz um lugar se tornar um lugar para cada um de nós? Caminhar é uma forma de escrever, de respirar. Caminhar como queda, como fuga, como escape.

The sights become characters.
O Noguchi Museum é o um cenário de uma história de amor entre os meus pais. Não tenho memórias deles juntos, então aquelas esculturas de pedra são, para mim, a paisagem de um capítulo em que eles trocaram carinhos e promessas para o futuro. Achei uma carta, the last love letter, que meu pai  declara o seu amor para a minha mãe e para Nova York. Quando finalmente visitei o Nogucchi Museum, tudo era tão diferente. O preto e branco das imagens deu lugar às cores quentes do outono, as esculturas pareciam menores e as texturas grandiosas, como se eu pudesse finalmente tocá-las, como se eu pudesse caber ali. Sentei no jardim e percebi que deveria respeitar aquele silêncio, os espaços que não posso completar, um tipo de melancolia que tem uma certa revolta. Pensei na música de Patti Smith, wild leaves. Ela escreveu que, quando era pequena, queria ser geóloga. Eu também. Na última semana da minha viagem, voltei ao sebo e encontrei um livro de Noguchi: “We are a landscape of all we know”, dizia ele.

New York Surface Stories.
Segui fazendo pequenos relatos, perfis de pessoas e lugares que fui conhecendo nestas quatro semanas que passei em Nova York. Conheci, em Chicago, a mulher que mais amou o meu pai e que hoje está em busca de novas viagens e um novo amor; fiz amizade com um fotógrafo de passaportes que vendia produtos de beleza em uma lojinha no Brooklyn e me falou sobre as suas poesias e as ruínas da sua cidade no Yemen. Cada caminhada me trazia novas texturas e fui construindo esse grande mapa investigativo de uma busca que não sabia muito bem onde ia dar. Comecei a colocar as páginas dos livros em saquinhos plásticos, como uma forma de protegê-las, e depois em lâminas que se transformaram em novas camadas. Me apropriei da palavra surface em uma obra do Bruce Nauman, na exposição que fomos ver no Moma, e que me trouxe o nome do projeto: New York Surface Stories, histórias de superfície que ora se conectam, ora se distanciam, mas que fizeram o meu mapa do caminhar neste momento. A residência se fez na experiência, no contato com cada um. Em certos momentos, parecia estar vivendo as coisas como se fosse a primeira vez, exatamente como aquele texto. Apesar de tanto passado, Nova York me mostrou os caminhos para viver o presente.

Imagens feitas por Lara mostrando alguns detalhes de como ocupou o estúdio durante a residência

*Lara Perl é fotografa, editora e artista visual. Investiga os limites da palavra e da imagem fotográfica entre arquivos e poéticas ficcionais, que se materializam em livros e outras invenções gráficas. Em 2016, realizou Temporal, sua primeira exposição individual, e fundou a GRIS – editora independente que publica fotolivros, zines e livros de artistas baianos. Nos últimos anos, vem participando de diversas feiras e exposições coletivas como o Festival de Fotografia do Sertão (Feira de Santana, 2015), Lambes na Laje (São Paulo, 2015-2016) e Miss Read Art Book Fair (Berlin, 2017). Também tem obras na coleção permanente do Espaço Pierre Verger da Fotografia Baiana e atualmente cursa mestrado em Processos de Criação Artística no Programa de Pós-Graduação de Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia (PPGAV-UFBA).