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Uncool Artist

Sobre cartas e duvidar-se

Por Carolina Paz

O ato de escrever em si é como um ato de amor. Existe contato. Há troca também. Já não sabemos se as palavras saem da tinta para a página, ou se emergem da própria página onde estavam dormindo, a tinta simplesmente dando-lhes cor. (Georges Rodenbach, The Bells of Bruges)

Carta-desabafo, carta-socorro, carta-conselho, carta-aula, carta-documento. Carta achada, carta escavada, carta rasgada, carta amassada, carta guardada. Lida, esquecida, copiada, rasurada, perfumada…

Não sei quanto a você, mas para mim carta é algo muito poderoso. Um assunto especial sobre o qual gosto de pensar. Infelizmente tão rara hoje em dia. Além de ter uma materialidade que, principalmente depois do e-mail, a torna tão única como nunca, ela evoca um tipo de texto a meu ver muito específico, que parece que só ela tem.

Seria o meio que conforma a mensagem, Sr. McLuham? Talvez…

Carta escrita a mão ou “batida à máquina” (máquina de escrever não é digital e está valendo nesse conjunto de sensações que tenho quando penso em carta) tem valor de tesouro para mim. Não um valor de memória, de nostalgia, como uma foto “dasantiga” mas uma sensação de tocar o outro, de estar de frente com aquele que a escreveu. É como se eu pudesse sentir essa pessoa, uma fragilidade exposta, a vulnerabilidade de quem escreve, uma disposição que mesmo a mais formal das cartas (escrita à mão ou batida à máquina) expõe.

Também, carta é diferente de diário. Apesar de ser escrito em primeira pessoa e da intimidade que contém, o diário é essencialmente datado, vinculado ao tempo. A carta não. Não necessariamente. A gente coloca uma data na maioria das cartas, sim, mas sua primeira intenção é o destinatário e depois o registro do fato e isso muda sua textura.

Você entende porque não tive nenhum problema (muito pelo contrário!) em trocar pinturas por cartas que algumas pessoas se dispuseram a me enviar há uns anos atrás?

Tenho as cartas em tão alta estima que para mim valem tanto quanto ou até mais que as pinturas que fiz. São como um milagre da materialização da presença do outro. Uma materialização que posso guardar. Se na foto eu tenho o registro da aparência do outro, do instante de algo que foi visto, a carta equivale ao registro do “recheio do outro”, do seu humor, da sua intenção, preocupações, interesses, ideias, vocabulário… Carta é conteúdo simbólico e materialidade objetual. Ela existe em corpo e alma.

Queria falar, na verdade de uma carta específica que descobri em 2014, um ano pessoalmente super conturbado. Era como se ela tivesse sido escrita para mim e até hoje eu a consulto e passo pra frente sempre que posso/preciso. É uma carta “chacoalhão” do Sol Le-Witt para a Eva Hesse em um período em que ela havia se mudado para a Alemanha, acompanhando seu marido, o escultor Tom Doyle. Ela, então, passava por um momento de crise bem delicado. (Se quiser ler a carta, clica aqui)
Cópia da carta de Sol Lewitt publicada em Letters of Note: An Eclectic Collection of Correspondence Deserving of a Wider Audience. Este livro contém a imagem de todas as páginas da carta assim como a transcrição e informações históricas sobre o documento

Eva nasceu na Alemanha, em 1936, e muito pequena se mudou com a família para os Estados Unidos, fugindo da perseguição nazista. A mãe se suicidou quando a notícia de que seus pais (avós de Eva) tinham sido executados em campo de concentração. Imagine o quanto era difícil para ela estar naquele país. Para saber com detalhes a biografia de Eva Hesse, há um documentário muito bom, de 2016 que conta toda a trajetória pessoal e artística dela assim como retrata toda uma importante época da arte Norte Americana. Vale muito a pena assistir. Super recomendo.

Eva escrevia muito, em diário e cartas. Um dos seus principais interlocutores e um dos seus melhores amigos, era o artista Sol LeWitt. A famosa carta de Sol à Eva é uma resposta dele a um desabafo que ela havia feito sobre suas dificuldades logo que se instalou na Alemanha.

Nessa mensagem para Eva, Sol a empurra para além das dúvidas sobre sua produção e da “auto-dúvida” que ela sente. Ele compartilha com ela que ele mesmo passa por essas dores e medos. Quem não? O importante é não paralisar, é seguir, fazer, partir para a ação.

Depois desse período de profunda dúvida e depois da troca de cartas, Eva deixou a pintura e voltou-se para a escultura e pesquisa formal e subjetiva que tornou seu trabalho aquele que conhecemos hoje.
Eva Hesse no momento “saindo da crise” na sequência da troca de cartas com Sol LeWitt. Início de uma nova produção de obras. Descobrindo-se

É engraçado como toda essa liberdade que temos como artistas às vezes parece nos expor a um poço sem fundo – o tal do abismo que tantos falam para nos jogarmos – e como é recorrente a gente fazer um trabalho até um determinado ponto, até um certo nível de atrevimento e de risco e como é difícil atravessar essa película do autocontrole, da autocrítica…

Sou da opinião que essa imagem de “gênio do artista”, essa mania de acharmos que tudo o que produzimos é “trabalho”, no sentido de ser a obra acabada, atrapalha demais e alimenta as travas. Idealizamos nosso ofício, idealizamos nosso trabalho, idealizamos a validação alheia, idealizamos a relevância do gesto poético frente à fantasia de “História da Arte”… Desculpe mas vou dizer a você algo bem parecido ao que o Sol disse à Eva:

FODA-SE! Apenas FAÇA!

Sim, procure diferentes referências, pesquise, nutra-se de um repertório que te enriqueça nas Artes e fora delas (claro!). Entregue-se à vida e não se proteja dela. A experiência de estar vivo é infinita em possibilidades, divirta-se, mesmo que doa, divirta-se. Como diria meu pai “caiu, levanta!”.

Leia as cartas de Rilke ao ‘jovem poeta’, leia as cartas de Vincent para Theo, leia as cartas acariocadas entre Lygia e Hélio. Leia os diários e anotações de Frida, Matisse, Louise… Leia os tratados, os manifestos, os tantos textos de artistas, as tantas as publicações… Mas sem se agoniar, pelamor! Ninguém vai dar conta de toda a literatura disponível e nem por isso precisa paralisar e não ler nada de tanto pavor. Não idealize o leitor perfeito!

E agora, fica mais claro os porquês da minha escolha por “Uncool Artist”?

 

Imagem destacada: Still de Desejo Motivo, 2017

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